Norma chegou pousando a sua mala numa das mesas ainda desocupadas. Com um laivo de preocupação no rosto, aproximou-se de nós. Soltei-me dos braços de Denzel, limpando as lágrimas à manga da minha camisola castanha. Norma abraçou-me.
- Está tudo bem contigo? Eu não devia ter-te deixado sozinha... Percy consegue ser muito possessivo.
- Não faz mal, Norma. Como iria adivinhar?
Ela largou-me e ficamos os três a olhar uns para os outros.
- Temos de participar isto à polícia... - sugeriu Norma.
- Não! - protestei. - Ele não me fez nada, e se eu apresentar queixa, a polícia irá perceber que eu fugi de casa! Eu sou maior de idade, mas Jackson não vai demorar muito tempo a procurar-me, e se eu o fizer, mais depressa me irá encontrar.
- Ela tem razão... - admitiu Denzel. - Ele não nos ia alvejar. Ele apenas queria intimidá-la para que ela respondesse afirmativamente ao seu pedido. Ele não é perigoso para os outros. Ele é o seu próprio inimigo. Ele foi meu paciente há algum tempo. Tentou suicidar-se após o falecimento da sua esposa, depois viciou-se no álcool, e , creio eu, que ele só fez isto por ter bebido de mais. - fez uma pausa. - Mesmo assim, continuo a achar que é melhor estarmos atentos. - finalmente sorriu. - Eu encarrego-me da segurança da Olivia.
Sorri também.
- Bem, - disse Norma. - estou a ver que estou a mais. Dado que não há estragos, vou... buscar a Claire e o Chase. Até já!
Norma afastou-se deixando-nos a sós. A multidão curiosa já tinha desaparecido e apenas permanecíamos nós no café. Denzel apanhou o seu casaco, colocando-o cuidadosamente nas costas de uma das cadeiras. Posteriormente, pegou-me nas mãos e disse com um laivo de preocupação:
- Quando eu vi aquele aparato todo, uma voz na minha cabeça disse "Olivia". Foi um acto reflexo. Nem sequer pensei. Entrei e dei de cara com Percy a apontar-te uma arma. - fechou os olhos, como que não se quisesse lembrar de algo. - Fez-me lembrar tanta coisa... Fez-me ter... medo. Medo de não chegar a tempo, de perder, de chegar e ver-te no chão a brotar sangue! Pensamentos horríveis! - voltou a abrir os olhos. - Não dormi na noite passada. Passei a noite toda a pensar naquilo que se tinha passado, procurando respostas, questionando-me constantemente, mas cheguei à conclusão que não posso...
Ainda tinha esperança que ele formalizasse um pedido, mas ele estava a negar qualquer tipo de relacionamento entre nós.
- E... porquê? - questionei estupidamente.
- Porque... embora eu saiba que isto vai contra os meus sentimentos, é melhor para ti.
Comecei a ficar furiosa. Se ele gostava de mim, por que razão estava a fugir?
- Ouve-me. - pedi, fitando-o. - Se queres o melhor para mim, não desapareces. Farta que todos me abandonem, estou eu. Se vais fugir a sete pés, preferia nem sequer te ter visto ou conhecido. - deixei de o fitar. - Se gostas de mim, fica. Não me faças viver novamente na era da escuridão. Estive cega durante anos, e quando finalmente vejo a luz, ela resolve novamente fundir-se na escuridão! Achas que isso me faz sentir melhor? Achas?
Ele nem sequer respondeu. Olhou nos meus olhos, e disse calmamente:
- E se alguém te tivesse mentido? O que farias?
- Ficava chateada. - admiti.
- Então, eu não quero que fiques chateada comigo.
Pegou no seu casaco e voltou-me as costas. Fiquei furiosa com a sua atitude. Ele hesitou ao dirigir-se para a porta. Olhou para trás com uns olhos tristes e acenou-me, voltando-me novamente as costas.
- Espera! - clamei.
Ele olhou para trás. Em sete passos coloquei-me ao seu lado.
- Eu não quero saber se me escondes alguma coisa! A única coisa que eu quero saber é sobre a nossa felicidade. - funguei. - E eu sei que não sou a única aqui que tem sentimentos. Se não o soubesse não estaria a demonstrá-lo.
Ele entrelaçou os seus dedos nos meus e sorriu.
- Eu sou racional. Por quê estar a fugir daquilo que gosto? Não quero ser eternamente aquele que foge dos seus verdadeiros sentimentos. - olhou-me nos olhos novamente. - Ontem encontrei uma resposta para as minhas questões: Amor.
Os seus olhos brilhavam intensamente, tal como o seu sorriso angelical. Eu também, como era de esperar! Finalmente tinha encontrado alguém compatível comigo.
- Aceitas... hum... jantar comigo hoje?
- Acho que não quero recusar! - respondi. - Já agora, é algum sítio especial ou posso levar uma roupa qualquer?
- Vai tornar-se especial. - respondeu.
- Então... até logo.
- Venho buscar-te às oito.
Ele saiu do café e Norma apareceu com Claire e Chase. Claire sorriu-me e Chase prendeu-me com umas algemas de plástico. Norma aproximou-se de mim, sorrindo:
- Está tudo sobre rodas, hem?
Sorri-lhe.
- Sim. - entrei em pânico. - Norma... eu aceitei ir jantar com Denzel mas nem sequer me lembrei que...
- Vai! Às sete horas quero-te fora daqui! No bom sentido...
- Obrigada, Norma.
- Parece que não vamos ter grande clientela. Está um frio de rachar... Podes ajudar a Claire a concluir um trabalho para a escola?
- Claro!
Dirigi-me a Claire que puxou uma cadeira para me sentar. Com a sua voz infantil, ela pediu-me para a ajudar no trabalho de Ciências Naturais. Por acaso, era a minha disciplina preferida e tirava boas notas. O tema era os animais, algo que sempre me interessou.
Apenas os clientes habituais apareceram naquela tarde, pelo que não tive muito trabalho. Claire terminou o trabalho cedo, dando-me algum tempo para limpar as mesas e o chão.
Às sete horas tirei o avental e dirigi-me para o meu quarto. Vesti um vestido de malha preto e nuns collants transparentes. Calcei as minhas botas pretas rasas e peguei no meu casaco igualmente preto. Para dar um pouco mais de cor, coloquei um cinto prateado por cima do vestido. Tratei depois do meu cabelo. Não havia grande coisa a fazer-lhe, a não ser pentear. Vasculhei na minha mochila uma mala. Acabei por encontrá-la e coloquei lá a minha carteira e o meu telemóvel.
Quando olhei para o relógio, vi que faltavam apenas alguns minutos para ele me vir buscar. Ia jurar que não tinha demorado tanto tempo na escolha da roupa! Atravessei o café, anunciando a Norma que já ia. Ela disse-me para ter juízo. Sorri e dirigi-me para o exterior.
Estava muito frio. As estrelas estavam cobertas por nuvens e o vento fazia rodopiar as folhas no chão. A rua estava deserta. Apenas os carros circulavam. Finalmente um carro parou. Um Audi Q7, com vidros escuros parou em minha frente. Denzel saiu do carro exibindo a sua estatura fabulosa.
- Olá. - disse ele dando-me a mão. - Vamos?
- Vamos.
Ele abriu-me a porta do carro e fechou-a, dirigindo-se depois para o seu lugar. Dentro do carro estava agradável. Estava quente e a música que saía do rádio era agradável.
- Estás muito bonita. - disse ele não tirando os olhos da estrada.
- Obrigada.
A condução dele não excedia a velocidade permitida.
Finalmente paramos em frente a um restaurante demasiado chique para o meu gosto.
Ao entrarmos, Denzel ajudou-me a tirar o casaco e entregou-o a um funcionário que se encarregou de os colocar num cabide.
O restaurante estava apinhado de gente. Sentia-me ridícula com aquela roupa. Todas as mulheres envergavam roupas requintadas, enquanto eu apenas trazia um vestido de malha...
Denzel colocou as suas mãos nos meus ombros e segredou-me ao ouvido:
- Não te rales, pois para mim continuas a ser a rapariga mais bonita desta sala.
Um funcionário indicou-nos a mesa. Era uma mesa redonda e encontrava-se suficientemente afastada das mesas ocupadas. Denzel afastou a cadeira para eu me sentar. Deveras cavalheiro.
A luz do restaurante era fraca. Talvez fosse propositado, dado que existia um castiçal no centro da mesa, bem como os pratos, os talheres e ainda um pequeno arranjo floral com rosas brancas. Havia também música de fundo. Homens engravatados encontravam-se num canto a tocar violino. A melodia era bonita.
- Gostas? - inquiriu ele.
- Adoro!
A verdade era que eu preferia a companhia dele do que propriamente todo aquele luxo.
Rapidamente nos trouxeram-nos o jantar e uma garrafa de champanhe. Começamos a mordiscar o jantar. Estava divinal! Por fim, bebemos o champanhe.
- Sabes, pensei em levar-te ao McDonald ´s mas depois vi que não era apropriado para o acontecimento...
- Hum... que acontecimento?
Ele tirou do seu casaco uma caixinha azul. O meu coração palpitou fortemente. Ele olhou-me nos olhos e colocou a caixa à minha frente. Abriu-a delicadamente e eu vislumbrei um anel reluzente com um rubi no centro.
- Vamos tentar? - questionou tirando o anel.
- Sim. - murmurei.
Cuidadosamente ele colocou aquele anel no meu dedo.
- Este anel pertenceu à minha bisavó. - disse ele. - Ela deu-mo quando estava prestes a morrer e disse para o colocar no dedo de quem eu achasse que merecesse. E quando o colocasse em alguém, não o poderia tirar mais.
- Mas tu nunca tiveste ninguém? - perguntei curiosa.
Ele esboçou um sorriso e baixou o olhar.
- Sim, tive. Apenas uma.
- E por que não lhe deste este anel?
- Porque não sabia dele. - confessou. - Aparentemente não queria entrar no dedo dela. - gracejou.
- Ainda... sentes algo por ela?
- Desprezo... - disse rapidamente.
- Isso não é um sentimento muito bom! O que fez ela?
Ele suspirou.
- Para além de me trair, inventou coisas sobre nós que eram mentira. Não estivemos muito tempo juntos.
- Já reparaste que eu não sei nada sobre ti?
- O que queres saber? Nasci na Suécia, vim para cá com quinze anos para morar com a minha avó porque os meus pais morreram a escalar uma montanha. Não me abalou muito esse facto, porque não tínhamos uma relação muito forte. Eles passavam a vida a viajar e eu tinha de ficar em casa com uma senhora qualquer. Na verdade, era divertido. Era muito traquina e só fazia asneiras! - sorriu. - Quando era adolescente era uma praga! Tinha piercings, tatuagens, tudo o que causasse um grande impacto nas pessoas. Andava com más companhias. Fumei o meu primeiro cigarro aos dezasseis... Só acordei para a vida quando fui parar à cadeia por algo que não tinha feito. Aí, passei a ser mais decente e a aplicar-me na escola. Quando já estava a atinar, os médicos anunciam que a minha avó tinha cancro em fase terminal. Conclusão: morreu passados alguns meses e eu herdei parte dos seus bens, nomeadamente a casa onde vivo.
- Lamento...
- Nada disso! Não tens que lamentar nada!
- Ainda tens as tatuagens? - questionei troçando dele.
- Sim, que remédio. Uma no braço, umas quantas nas costas... Algo de que não me orgulho.
Denzel olhou para o seu relógio de pulso.
- Está na hora... - disse ele levantando-se.
- De quê?
- Depois vês.
Caminhamos até à recepção de mãos dadas. Ele ajudou-me a vestir o casaco.
Saímos para a rua, onde o frio era trespassante. Não fomos de carro. Atravessamos a rua, subindo posteriormente umas escadas e avistei um enorme ringue de gelo artificial. Apenas estavam umas crianças a patinar. Olhei para ele e ele fez um gesto para me acalmar.
- Eu... não sei patinar...
- Eu ajudo-te! - disse ele.
Denzel tirou o seu casaco exibindo uma camisola que lhe assentava lindamente. Calcou os patins e fez uma dobra nas suas calças de ganga. Eu tirei apenas as minhas botas. Eu já estava a ver o filme: mal entrasse no ringue, ia cair e partir um braço ou uma perna. Denzel, muito provavelmente iria rir-se de mim...
Comecei por dar pequenos passos, mas se Denzel não me segurasse eu tinha caído. Como as minhas tentativas em patinar davam sempre para o torto, ele decidiu agarrar-me pela cintura, segurando-me firmemente, executando passos graciosos. Com ele a executar os movimentos, eu sentia que podia voar, embora soubesse que se ele me largasse eu cairia num instante.
- Confias em mim? - questionou ele a dada altura.
- Mais do que em mim. - respondi.
- Estás pronta?
- Pronta? Pronta para quê?
Então, ele pegou-me ao colo e começou a patinar a uma grande velocidade. Sentia o vento cortante a gelar a minha face. Agarrei-me ao seu pescoço para não cair.
- Den, por favor, eu não quero cair! - gritei.
Todos olhavam para nós. Deviam pensar que éramos malucos!
- Confia em mim!
Ele aumentou ainda mais a velocidade. Decidi fechar os olhos. Finalmente, ele cansou-se. Levou-me até junto do banco. Largou-me e eu deambulei.
- Eu estou bem. Só estou um pouco zonza.
Ele soltou uma gargalhada.
- Desculpa, achei que ias gostar.
- Gostei da parte em que me pegaste ao colo, mas a corrida foi um bocado... aterradora.
Ele olhou novamente para o relógio.
- Livi, acho que são horas de recolher.
Fiz um trejeito com aboca.
- Pareces o meu pai a falar...
- Sentes a falta dele? - questionou ele enquanto calçava os seus ténis.
- Não.
Calcei as minhas botas e, posteriormente dirigimo-nos para o carro.
- Livi, eu estive a pensar... tu não estudavas?
- Sim, estudava. Porquê?
- Podes voltar a estudar.
- Denzel, não é muito fácil. Se eu me matricular numa escola, vai ser mais fácil para Jackson me encontrar. Eu estou condicionada.
Ele sorriu.
- Bem, se te matriculares numa escola... Mas podes ter um professor particular.
- Denzel... nem penses!
- Já pensei! - troçou. - Amanhã, em minha casa às dez da manhã.
Suspirei.
- Tu não tinhas o direito! Não és meu pai!
- Grande coisa! O teu pai não faria isto por ti!
- Está bem! Obrigada... mas sabes que eu não te posso pagar para já.
- Podes. Com os teus sentimentos.
Corei.
- Chegamos. - anunciou ele num tom de voz baixo.
- Parece que sim...
Ele inclinou-se para mim e os nossos lábios tocaram-se pela primeira vez. Os seus lábios estavam quentes e os meus estavam frios, o que me causou um arrepio que me percorreu a coluna vertical.
Decidi que era melhor terminarmos por ali, por isso afastei-me.
- Obrigada por tudo, Den.
- Obrigado por estares comigo.
Ambos sorrimos.
Abri a porta do carro e saí, atravessando a rua para dirigir-me para o interior do estabelecimento. Ele esperou que eu entrasse. Já no interior, vi que ele desapareceu por entre a noite gelada de Novembro.